Entrevista: websérie documental sobre educação, transformação social e liberdade

postado em 11/08/2017


Em julho, noticiamos aqui no portal CurtaDoc sobre uma websérie documental que mostra projetos alternativos de educação na América Latina. O projeto foi desenvolvido pelo coletivo independente e sem fins lucrativos de Niterói Reconsidere.

A ideia era visitar doze escolas em seis países da América do Sul que fugiam ao modelo tradicional e desenvolviam uma proposta pedagógica mais libertária e emancipatória baseada na horizontalidade, autonomia, cooperação e solidariedade. Por meio de financiamento coletivo, ações nas mídias sociais e festas colaborativas, o Reconsidere conseguiu arrecadar R$ 32.000 para viabilizar a viagem dos dois professores membros, Franco de Castro e Estevão Balado.

O fruto dessa experiência é a websérie “O que eles têm para nos dizer”, que já conta com cinco episódios disponíveis para assistir no YouTube. É sobre essa vivência proporcionada pela série – aprendizados e reflexões – e, principalmente, sobre educação que conversamos com o coletivo Reconsidere. Confira:

1- “O que eles têm para nos dizer” fala sobre o que?

Reconsidere– A nossa websérie foi pensada para suprir um vazio que sentíamos em termos da abordagem da discussão sobre educação, principalmente no que tange às produções anteriores audiovisuais que protagonizavam educadores e especialistas em educação, mas não davam o devido destaque aos principais atores do processo educativo: as crianças e jovens. Foram produções excelentes que cumpriram papéis fundamentais no sentido de revelar os problemas da escolarização no modelo escolar tradicional e as possíveis tendências alternativas que se contrapõem a essa lógica. Porém, nós queríamos complementar esse material de base com outro enfoque. Decidimos então criar uma websérie que tivesse como cerne o exercício da escuta desses atores historicamente silenciados nos ambientes escolares. É importante frisar que não fomos para dar voz, porque acreditamos que o outro sempre tem voz, a questão é justamente nossa disposição em escutá-los.

Não podemos pensar mais numa educação oferecida como um serviço para o outro, mas sim como uma construção com o outro, portanto escolhemos projetos que tinham características bem diferentes no âmbito metodológico, histórico ou nas estratégias de transformação social, mas tinham em comum o fato de serem sem fins lucrativos. Esse foi o principal critério que utilizamos e além, claro, das tendências pedagógicas estarem direcionadas ao campo progressista da educação.

Não visitamos os projetos para fazer vídeos promocionais. Deixamos isso muito claro nos contatos. Fomos para ouvir, compartilhar e registrar potencialidades, virtudes, mas também mostrar as contradições que são inerentes a qualquer experiência e que são importantes para o seu desenvolvimento.

Acreditamos que a nossa websérie carrega em si uma visão sonhadora de que é possível pensar em alternativas para a educação, que elas já existem, mas também há muito ainda a ser construído em cada espaço.

Os vídeos falam sobre as lutas dos projetos no campo da educação e transformação social, que tendências pedagógicas os norteiam, como caminham e constroem seu cotidiano, sempre ouvindo principalmente as crianças e jovens, em relação a seus sentimentos.

Entretanto, é importante destacar que na educação nada pode ser reduzido a supostas ‘’verdades’’ presas em uma equação matemática. Não acreditamos em receitas de bolo para a educação, como se fosse possível achar a solução para todos os problemas da educação a partir de uma única experiência. Cada realidade é uma. Cada espaço tem a sua história e suas especificidades. Trabalhamos com aquilo que cada projeto possui e daí, buscamos construir juntos.

2 – Por que (re)considerar a educação?

Reconsidere– A educação, especialmente no âmbito escolar, sofre de uma inadequação temporal: um modelo do século XIX, professores do século XX e alunos do século XXI. Aqui falamos de uma escola a serviço da manutenção da ordem vigente: hierarquizada, opressora, formatadora, que desrespeita a individualidade, que rejeita as particularidades, que evita problemas, que despreza sonhos, que inibe a criatividade, as diferentes formas de expressão, que aliena, e trata seus estudantes como produtos a serem preparados para o mercado de trabalho, como se não fossem, absolutamente nada, no presente.

Nós queremos disputar o conceito de Escola e propor algo diferente disso, que atualmente está dado. Não falamos de prédios, negócios ou serviços, mas sim de pessoas e, sobretudo, das relações estabelecidas nesse espaço, seja ele qual for.

Defendemos uma educação emancipatória, que valoriza e respeita a diversidade, o diálogo e a crítica, que aceite lidar com problemas, que garanta horizontalidade, autonomia, cooperação, fraternidade, solidariedade e amor no processo educativo. Uma educação verdadeiramente plural, sem muros e que amplie a capacidade criativa e questionadora dos estudantes pode ajudar a construir uma sociedade mais justa, bem resolvida, crítica, interessante e transformadora – menos frustrada e doente.

Ao longo da nossa trajetória entendemos que educação e escola não são sinônimos e, por mais relevante e necessário que seja a transformação das instituições escolares, o espectro de discussão na educação é muito mais amplo. Por isso não nos limitamos só a debater o modelo escolar. Debater educação é tocar em muitas temáticas relevantes, como: Medicalização na Educação, Educação e Direitos Humanos, Educação e Debate de Gênero, Educação indígena e quilombola, entre outras.

Buscamos promover o debate, a reflexão, para quebrar a ditadura de opiniões. Queremos conversar com todos, do mais engajado ao mais resignado. É no diálogo, na capacidade de ouvir e de falar, que vamos nos desconstruir para construir coletivamente. Por isso, escolhemos o caminho da produção textual e audiovisual – 100% autoral, orgânica e aberta. Nossas redes sociais estão cheias de vídeos, entrevistas, inquietações, músicas, clipes, poesias, notícias, números e informações que produzimos.

3 – Qual o maior aprendizado do coletivo Reconsidere com essa produção?

Reconsidere– Alguns dizem que devemos nos contentar com as ondas, já que não podemos transformar o mar… Mas já vimos o mar mudar, sabemos que é demorado e que, eventualmente, grandes tempestades antecedem estas mudanças. Nós do Reconsidere acreditamos que o mar pode se transformar. Com amor e brilhos nos olhos, sempre surge sementes de transformação. Nessa experiência com a viagem, mais do que incríveis espaços de educação alternativa, vivenciamos um mundo mais fraterno, colaborativo e, sobretudo, mais humano. Não sabemos mais se a questão é a construção de um novo mundo, ou se é a prática dessa célula pulsante, viva, que já existe. Não sabemos tampouco, se o mundo que tanto sonhamos será vivido por nós. Trata-se também, do que serve a utopia, como dizia o poema do Fernando Birri, brilhantemente vocalizado pelo Eduardo Galeano:

‘’A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar’’.

Queremos olhar para o horizonte e sermos capazes de ver em mais lugares esse mundo mais colaborativo, mais amável e mais justo e acreditamos que a educação seja um elemento central nesta caminhada para a transformação de diversos paradigmas atuais.

A websérie foi fundamental para vivenciarmos na prática que não existe educador pronto, mas sim educador em permanente mutação. Não sabemos quanto tempo levará para decantarmos tudo que vivenciamos, já que os ecos dessa experiência parecem sempre reverberar em nossas vidas e manter firme a chama de que a transformação passa por nós, em nosso autoconhecimento, em nossa desconstrução e em novas formas de relação com o mundo.

Há uma rede de pessoas, sonhos, projetos que cada vez mais se encontram em multiplicam seus anseios em ações concretas de transformação da realidade. O maior aprendizado é saber que estamos fazendo parte da mudança.

Não há mudança sem doação.
Não há doação sem completa entrega.
Não há entrega sem confiança.
Não há confiança sem esperança.
Não há esperança sem luta.
Não há luta sem sonhos.
Não há sonhos sem utopias.
Então, para que serve a utopia?

4 – Por onde começar a mudança?

Reconsidere– Acreditamos que a transformação da educação é um caminho inevitável. Até mesmo, pensando nas demandas do próprio sistema capitalista, essa escola já não cumpre mais com a mesma excelência, o seu papel de antes. Um dado sintomático é taxa de evasão escolar no Brasil, que, com 24,3%, está em terceiro lugar entre os 100 países com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e na América Latina, só ‘’perde’’ para Guatemala e Nicarágua. Um a cada quatro estudantes de escolas públicas não completa o ensino fundamental no Brasil.

Dentre os inúmeros motivos ligados à evasão, estudos apontam que o principal fator é a falta de interesse dos estudantes com a escola. Muitos são os motivos relacionados a isso, entretanto não há dúvida que a mudança passa pela simples e rara pergunta feita aos jovens: o que vocês desejam aprender? Continuando, como vocês desejam aprender?

Sonhamos com uma escola que eduque com indagações, que construa coletivamente com seus estudantes aquilo que desejam aprender e a forma como vão aprender. Uma escola plural, que debata, problematize e lide com problemas e onde todos tenham voz. Uma escola atuante na comunidade na qual estiver inserida e com participação dela na construção de seus projetos. Uma escola que eduque para a liberdade, no exercício da liberdade, afim de criar uma sociedade mais humanizada e altruísta.

É fundamental a construção coletiva nos espaços escolares possibilitando o surgimento das diferentes formas de expressão. Valorizar a diversidade na educação é respeitar e possibilitar que o outro se expresse, que o outro seja e não meramente um projeto normativo de ser. Nesse sentido, os caminhos para transformação não seguem com uma única resposta (que bom) para esse fazer inovador na educação, mas é importante os projetos definirem de maneira coletiva as diretrizes políticas e pedagógicas que os norteiam. O desenvolvimento de uma educação democrática passa pela criação do conceito de comunidade escolar. Os diferentes atores precisam se envolver e participar das tomadas de decisão da escola.

Acreditamos que a mudança passa pelos encontros. As pessoas precisam se encontrar, trocar, compartilhar experiências e aprender umas com as outras. Trata-se de tecer redes e sonhos.

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***A resposta base dessa entrevista foi escrita por um dos membros do Reconsidere e depois passou por um processo de debate e aprovação. Todas as fotos foram tiradas dos perfis do coletivo nas redes sociais.

Inicialmente, os episódios estavam sendo lançados quinzenalmente, mas com as inúmeras demandas do coletivo as previsões de lançamento dos vídeos agora são mensais.

Entrevista e texto por Fernanda Pessoa de Carvalho.

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